Saúde pública

O drama de quem aguarda por cirurgia de traumatologia

Fila de espera chega a cerca de 900 pessoas; não raro, casos chegam ao Conselho Municipal de Saúde de Pelotas e ao Ministério Público

pr1903Desabafo: "Cheguei em todos os meus limites", afirma Leandro Pires (Foto: Paulo Rossi - DP)

O sentimento é de indignação. Dentro e fora da Traumatologia da Santa Casa de Misericórdia de Pelotas. Nas enfermarias, uma realidade crônica: pacientes esperam há meses por cirurgias. Há casos, inclusive, de quem recebeu alta sem realizar o procedimento tão aguardado. Longe do ambiente hospitalar, em meio à rotina, cerca de 900 pessoas clamam ser chamadas para ocupar esses mesmos leitos. Uma falta de perspectiva que, em ambas as situações, alastra preocupação e revolta. Quem já está internado cobra agilidade no tratamento. Quem aguarda ser hospitalizado exige respeito ao direito de acesso ao Sistema Único de Saúde (SUS).

O Diário Popular apresenta nesta quinta-feira (21) a palavra de dois cidadãos que sofrem as consequências de uma engrenagem que não funciona bem. Com uma dívida histórica com diferentes equipes médicas, há anos os profissionais não têm cumprido o que está contratualizado. A própria Provedoria da Santa Casa assume e fala em projetos para corrigir o problema. Atualmente, 90 cirurgias de média complexidade e 26 de alta deveriam ser realizadas por mês. É o que está definido na contratualização firmada com a prefeitura. Na prática, a produção fica abaixo do estabelecido. Em muitos momentos, não chega a cem procedimentos - revelam os dados apresentados pelo hospital.

O tema já virou pauta do Conselho Municipal de Saúde, que pede avaliação da equipe de auditoria e de contratos da Secretaria de Saúde de Pelotas. "Inúmeras remarcações têm ocorrido sem justificativa técnica e o compromisso assumido pela Santa Casa de reduzir a fila, quando passou a receber o incentivo de R$ 170 mil por mês, está sendo descumprido", destaca o presidente do Conselho, Luiz Guilherme Belletti. E cobra também a disponibilização da lista de pacientes, para que visitas pudessem ser realizadas em parceria com a prefeitura para verificação do estado de saúde das pessoas e reavaliação de prioridades.
Afinal, quadros que inicialmente eram eletivos - e poderiam aguardar -, acabam por se agravar. E o caminho, não raro, tem sido o mesmo: parte dos casos escoa aos gabinetes do Ministério Público (MP) e da Justiça, na esperança de encurtar a corrida contra o tempo.

Alta sim, mas tratamento segue como dúvida

O pelotense Eliezer Pinheiro Fagundes, 27, foi liberado para ir para casa na última quinta-feira. Deveria ser motivo de comemoração, mas não foi. Após permanecer quatro meses hospitalizado, com objetivo de recuperar o fêmur esfacelado, o jovem foi embora com um rastro de indagações. Na quarta-feira, Eliezer retornará para avaliação, mas ainda não sabe ao certo quando e se colocará placa na perna. "Ficaram me

enredando tanto tempo, que acabei pegando uma bactéria depois que me colocaram um acesso central. Não tinha mais veia para receber medicação", conta. E acrescenta: "A gente fica alterado. Fica irritado mesmo. Pra mim, é além da imaginação pensar que eu fiquei todo esse tempo no hospital e tive que ir embora pra tratar uma infecção".

De 13 de julho, quando entrou na Santa Casa, até 14 de novembro, dois argumentos teriam se repetido por várias vezes para explicar a demora: falta de material à disposição e ausência de médico. Ao Conselho Municipal de Saúde, a explicação oficial foi de que uma possível calcificação poderia evitar a colocação de prótese.

Entre consultas, espera por exames e burocracia, lá se vão quase seis anos

A justificativa é clara: paciente com quadro severo e incapacitante de espondilite reumatoide, com dificuldade extrema de locomoção. A data do laudo para solicitação de internação é de 5 de fevereiro de 2019. A origem da inflamação na coluna vertebral remete a janeiro de 2014, quando sofreu acidente de moto. Começava ali um drama que passa por problemas na cabeça do fêmur da perna direita, sobrecarregou o lado esquerdo - em busca de apoio - e chegou à coluna.

"Não sei mais o que fazer. É complicado. Cheguei em todos os meus limites", desabafa Leandro Medeiros Pires, 36. Às vésperas de completar seis anos em busca de solução, quase dez médicos foram procurados. Foi necessário, inclusive, comprovar ao Município que aguardava por ressonância magnética solicitada em fevereiro de 2016. Bastou um raio X, entretanto, para que um traumatologista confirmasse a necessidade de cirurgia para colocação de prótese no quadril.

"Essa situação aborrece a pessoa. Já passou da hora de eu me operar. Tô cada vez pior", assegura. Dores. Dificuldades para sentar. Movimentos como embarcar em um ônibus ou agachar estão totalmente descartados. Sem falar na impossibilidade de retornar à atividade como pintor. Uma preocupação enfrentada ao lado dos três filhos e da mulher Nóris Rejane.

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web_IMG_1864Detalhe no laudo: "Paciente com quadro severo e incapacitante" (Foto: Reprodução)

O que diz a direção da Santa Casa

O provedor João Francisco Neves da Silva conversou com o Diário Popular por mais de uma hora, voltou a destacar que o serviço de Traumatologia dá prejuízos de aproximadamente R$ 48 mil por mês - mesmo com o incentivo municipal de R$ 170 mil - e assegurou que a partir de janeiro, afora os casos de urgência e emergência, os pacientes só serão internados depois de as cirurgias estarem com as datas definidas. Hoje, não raro, os cidadãos primeiro se hospitalizam para depois ser identificada alguma particularidade quanto a materiais necessários, por exemplo.

Com a equipe com os salários em dia e os fornecedores com as dívidas negociadas, o cenário se tornaria favorável. A expectativa é que, também a partir de janeiro, os médicos traumatologistas passem a receber complemento por produtividade e não só apenas a remuneração por plantão, como o acordado atualmente. Fora do horário em que estejam atuando pelo SUS, os profissionais também poderiam realizar cirurgias por convênios e particulares, que ajudariam a eliminar o déficit. A contratação de médico clínico geral, que possa se dedicar ao acompanhamento pós-cirúrgico e servir de interlocutor entre pacientes e traumatologistas, tende a agilizar o fluxo nos atendimentos - projeta o provedor.

Ao comentar a nova contratualização, em fase de tratativas interna e com a prefeitura, Neves garante que a equipe participará diretamente das discussões, para garantir o cumprimento do acordo. "A contratualização nossa, agora, vai ser com o compromisso do médico", enfatiza. E ao admitir o reiterado descumprimento das metas do SUS, ele mesmo explica o porquê: "A gente sabe. Nós estamos devendo para os colegas. Então, como é que eu vou cobrar?" A dívida hoje, só com os traumatologistas ultrapassa os R$ 300 mil e o pagamento que cai nos bolsos dos profissionais sempre se refere a pendências do passado.

A partir de 2020, o novo provedor - há oito meses no cargo - quer manter em dia a produção do mês anterior. "A minha gestão estará pagando e eu vou querer produção." E os atrasados? Seriam pagos sempre que a instituição tivesse margem financeira para lançar mão de recurso extra. Daí a importância de medidas, como a inauguração de um Centro Clínico com pelo menos seis consultórios, direcionados a convênios e particulares. A estimativa é que a nova estrutura pudesse injetar em torno de R$ 200 mil, por mês, ao hospital, desde o começo do próximo ano.

Saiba mais

A Traumatologia da Santa Casa de Pelotas é referência a três tipos de situação

É porta aberta 24 horas para os casos mais graves, que se enquadram em urgência e emergência, pelo SUS

Está de prontidão também para quadros mais simples, em que o paciente é atendido e recebe data para retorno

É referência para os casos de cirurgias eletivas, que são as que podem aguardar

A equipe é composta por sete médicos traumatologistas e sete médicos residentes

O hospital disponibiliza 32 leitos para estes tipos de serviços

As cirurgias eletivas só ocorrem de segunda a sexta-feira. Aos fins de semana, só casos de urgência

A posição da Secretaria de Saúde

Um dos pontos centrais em análise, neste momento, é sobre a realização de cirurgias de alta complexidade, que está abaixo do contratualizado - confirma a diretora de Gestão Ambulatorial e Hospitalar, Fernanda Lessa.

A equipe do Setor de Controle a Avaliação da Secretaria de Saúde de Pelotas foi orientada a realizar verificação criteriosa no sistema, já que a Santa Casa teria argumentado ao governo que o descumprimento se deve à falta de encaminhamento de pacientes. Teoricamente, não haveria demanda. Em um universo de aproximadamente 900 pessoas aguardando, difícil imaginar que nenhum dos casos seja de alta complexidade. É mais um nó para desamarrar, enquanto a população aguarda.

O número de cirurgias contratadas para 2020 também será alvo de debate daqui para frente. Ainda não há, todavia, como adiantar números.

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